Tenho sido afetada profundamente nas últimas semanas por um debate acerca do valor do diálogo, violência estrutural (de forma mais evidente, o racismo) e estratégias de lidar com a violência e protestar sobre ela.
Então hoje, quero abordar com vocês algumas reflexões em relação a isso e questionamentos que tenho recebido.
Começo dizendo que não existe Comunicação Não-Violenta sem observação das estruturas sistêmicas que nos impactam. A CNV atua nos três níveis ao mesmo tempo: intrapessoal, interpessoal e sistêmico. É fundamental compreender que a escuta das necessidades e expressão dos sentimentos não se limita a relações individuais, no “um a um”.
A visibilização dos sistemas que operam nossas relações é condição para a não-violência.
Quando estamos em um diálogo com qualquer pessoa (inclusive com nós mesmes) está incluído na conta os padrões sistêmicos que constroem a nossa relação e subjetividade com o mundo. Quais são os (pré) conceitos que carregamos com a nossa educação e bagagem de vida? Faz diferença ser uma mulher em posição de liderança sendo ouvida por homens? Faz diferença ser negro? Faz diferença ser indígena? Faz diferença entender que existem relações de poder operando o tempo todo nas nossas experiências? Escuta: é a capacidade que nós temos de presença, de abertura, de curiosidade sobre a vida que está acontecendo. Seja dentro de nós, seja fora de nós. Escuta é a condição básica para um diálogo. Senão ficamos apenas em monólogos intercalados. E como ressaltou semana passada Dominic Barter (precursor da CNV no Brasil), a ausência de diálogo mata. |
Escuta condicionada a como o outro se expressa (ou como eu gostaria que ele se falasse) não é escuta real. Diante disso, compartilho com vocês a pergunta que tenho me feito: como está a minha capacidade de diálogo? Lembrando que debates e batalhas de monólogos são diferentes do que é o diálogo – onde existe a real intenção de compreensão, de criação de algo em comum que surge a partir de nós, a partir do nosso encontro. O diálogo permite que se criem bases seguras em comum – que não tem a ver com concordar com o outro, mas validar as necessidades e sentimentos envolvidos e se abrir pra entender que a sua experiência de vida não é a única possível. Se eu reprimo a forma como um grupo sistematicamente oprimido está expressando a sua raiva e tentando me mostrar o tamanho da sua dor, entendo que estou alimentando o ciclo de violência. Estou fazendo o oposto de ouvir. E quanto menos um ser humano se sente escutado, a tendência é que grite mais alto para ser ouvido. É importante compreendermos a nossa relação de poder quando estamos ouvindo demandas. Na minha perspectiva, quando estou em uma situação de privilégio estrutural invoco mais resiliência para a minha capacidade de escuta. É sobre ouvir além do grito e superar a forma que eu estou recebendo essa comunicação para me colocar em uma posição de diálogo real. E significa diferenciar violência de uma ação enérgica que coloca limites para interromper a violência. A não-violência não é sobre passividade diante de injustiças e violência. Ela não exclui ação, pelo contrário, age para proteger a vida e criar pontes para que as necessidades básicas sejam atendidas. Será que podemos exigir tranquilidade e expressão didática de quem está sendo diariamente violentado ou podemos ouvir sem barreiras e agir em conjunto para bloquear a violência estrutural? Percebam que quando ouvimos as dores por trás da opressão e agimos a favor do encerramento do ciclo, nos colocamos ao lado e não em uma disputa sobre quem precisa se expressar/ouvir de forma mais compassiva. O que é violência estrutural? Toda vez que uma parcela da população não é escutada de forma sistêmica e repetidamente, estamos enfrentando um problema de violência estrutural. Significa que a estrutura da sociedade e a base de acordos está desenhada para silenciar (não escutar) as demandas, necessidades, desejos dessa parcela da população. Esse silenciamento pode se manifestar em diversas estratégias como tentativa de exclusão de espaços de poder e tomada de decisão, limitação de acesso a espaços públicos, violação de direitos, não validação de sentimentos e demandas ou simplesmente ignorar a existência e tomar decisões coletivamente que não levem em conta a equidade por bem-estar dessa população. Violência não significa apenas tiros ou agressão física. Ou leis claramente discriminatórias. O controle, deslegitimação e silenciamento de necessidades cotidianas é também violência. Paradigma da Dominação O paradigma da dominação que parece fortemente impregnado na visão de mundo da nossa sociedade sustenta a violência estrutural. É o paradigma que legitima a exploração de corpos, exploração de terras e recursos naturais, exploração de outros seres. O paradigma da dominação não se limita a grandes corporações e a um grupo específico, está impregnado na nossa cultura, nos relacionamentos amorosos, nas relações de trabalho, na criação de filhes, nas narrativas literárias. Aprendemos a dominar e a nos submeter. A Comunicação Não-Violenta nos convida a sair desse paradigma e experimentar a escuta e validação de todos os seres como premissa. Respeitando a multiplicidade de existências, as multiplicidades de opiniões e experiências. Não significa ter que concordar, não significa evitar conflito, pelo contrário. É sobre dar visibilidade às diferenças e ser capaz de coexistir com elas, sem ter que aniquilar o outro. Respondendo à pergunta inicial da Newsletter: Diante de toda violência estrutural que vivemos e o racismo que mata e desqualifica a cada dia, até onde vale o diálogo? Eu ouço pessoas dizendo que dialogar seria baixar a cabeça para o sistema e não combater a violência. Também ouço pessoas dizendo que não dá pra dialogar com quem é agressivo ou parte de visões de mundo muito diferentes. E nestes dois argumentos eu arrisco discordar. Dialogar inclui a possibilidade de conflito, inclui desconforto e não significa concordar. É necessário dialogar com quem pensa muito diferente de mim e usa argumentos que me parecem absurdos. Se eu quero viver em um regime que não é totalitário, quero viver em sociedade e não quero oprimir vidas, é necessário que haja conflito, fricção de ideias e de argumentos, pontos de vista sejam questionados. Para entrar num diálogo real saímos da nossa zona de conforto. E o diálogo também é uma ação de bloqueio à violência estrutural. Numa sociedade racista me parece urgente dialogar sobre racismo. Não apenas abrir conversas na perspectiva educativa (o que eu acho uma estratégia válida também) – mas estou falando de diálogo aberto, de escuta ativa, de desconfortos envolvidos, de busca de compreensão dos medos do outro ser humano. Diálogos que permitam gritos de dor. Diálogos salvam vidas, a ausência dele mata. Em alguns casos, uma rebelião pode provocar um diálogo. Desobediência de regras sociais violentas podem provocar diálogos. Dialogar na sociedade acostumada com dominação e submissão é revolucionário e pode interromper opressões históricas. Convido você que me lê a refletir sobre o quanto você tem evitado conflitos na sua vida. Que medos e desconfortos você está evitando? O que você está silenciando e oprimindo para sustentar essa ausência de conflito? |